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Uma vida que já deu um filme
15 May, 2014
Livro de memórias enquanto agente, outro de poemas, serviu nas fileiras do
exército português, também na Polícia Marítima, cursou na Judiciária, perseguiu
marginais, viu muitos refugiados em desgraça, credenciado treinador de futebol
pela Coreia do Norte, autor de três blogues que mantém activos, uma companhia
cinematográfica austríaca fez um filme sobre a sua vida, sentimento e dedicação
dividem-no por Macau e Tailândia, não suporta desde sempre os governantes em
Portugal. Meio século por este delta, filhos e netos, domínio do chinês, aqui
deseja permanecer.
Tem 70 anos de vida, 50 em Macau, onde António Manuel Fontes Cambeta,
voluntário do serviço militar, desembarcou furriel miliciano. “Cheiro intenso a
peixe salgado”, primeira sensação oriental naquela húmida noite de Setembro,
junto à amurada do “Tak Shin”, o ferry que trazia os militares, pois águas
profundas para o “Índia” atracar, só mesmo em Kowloon.
Para as funções de comandante militar na Taipa, o ambiente não era o
melhor: “a casa destinada ao sargento com capim à volta, quase a cobria, lá
dentro não havia energia eléctrica, só bicharada e bastante degradação”.
Opção seguinte, o quartel, mas nem aqui a recepção foi boa: “péssima
impressão, vidros partidos, armamento enferrujado, lixo e garrafas de cerveja
vazias, instalações divididas por redes, pois o espaço era repartido com um
centro de recuperação social; as duas viaturas militares, uma não tinha
gasolina, a outra sem ar nos pneus furados; até uma bicicleta que havia por ali
não estava operacional. Sem dinheiro, levámo-la às costas até à loja do senhor
A Nok que também falava português e compreendeu o meu desespero. O veículo
ficou a arranjar; para o livro do deve e haver do senhor A Nok, anotaram-se
mantimentos como grão, arroz, atum, o jantar daquele dia”. Ao comandante
militar na Ilha Verde pediu material de limpeza e comida. O jovem militar, tal como ainda hoje o veterano,
não se deixou abater: “fácil adaptar-me, sou como o camaleão”.
Memórias vivas, Cambeta recorda o cabo Lopes, chinês falante de português,
com quem estabeleceu os primeiros contactos pessoais: “o Lopes foi uma figura
essencial na minha integração, fizemos amizade até hoje”.
Primeira metade dos anos 60. Para este eborense, diversões, ainda sem sair
da Taipa, eram o cinema com projecção a partir de um dos lados da rua “onde
hoje é a Tasca do Luís”. 4 anos depois é que este furriel veio à cidade – de
lancha, claro, pontes eram miragem: “apenas o tempo de falar com o comandante
na Ilha Verde e regressar à Taipa”. Meses depois, por questões administrativas,
colocado no quartel da Ilha Verde. Recorda-se da primeira vez que percorreu a
cidade: “num jipe militar, ambiente calmo, embora em alguns locais, pancadaria
entre tipos das seitas. A cidade, para lá do centro, era pouco organizada;
junto ao Mercado Vermelho, muitos vendedores espalhavam as suas coisas pelo
chão; viaturas passavam raramente por ali, quando viam alguma davam saltos para
saírem do caminho atravancado, alguns deles ainda usavam rabicho”.
Lugares de eleição: o Beco das Galinhas, à entrada da Rua das Felicidades,
frequência interclassista, onde, por três patacas, uma beldade era a atracção.
Cambeta recorda também o restaurante “Belo”, na época procurado pelos praças. A
outro nível, outros lugares de convívio como o café “Esplanada”, onde hoje é o
edifício do BCM, frequentado pelos sargentos. Ali próximo, no “Solmar”, era
onde se sentavam oficiais e alguma elite local. Também o famoso “Ruby”, na
avenida Almeida Ribeiro, era visitado, a espaços, por macaenses e por este
futuro treinador de futebol, inspector policial, inspirador de filmes, autor de
vários blogues e outras manifestações de vitalidade. Foi no “Ruby” o jantar de
casamento de António Cambeta com a sua Lourdes, em 1968. Tem leitura crítica
sobre o comportamento de alguns militares em Macau, pelos anos 60: “Muitos não
se comportavam da melhor maneira, o que resultava não sermos bem vistos em
várias ocasiões”.
E chegou 1966, ano referencial na denominada “revolução cultural”. Cambeta
termina a comissão, mas não regressa a Portugal porque “conheci uma santa que
me acompanha até hoje” – referia-se a Lourdes, chinesa de Macau, sua
companheira de 46 anos; dois filhos e três netos, todos em Macau, foi o
resultado multiplicador desta união.
O empresário macaense Alberto Dias Ferreira dá-lhe trabalho – “fazia tudo,
desde serviço de escritório, vender bilhetes para os barcos entre Macau e Hong
Kong, ou vender os produtos portugueses que a “Aldifera” representava”. Desta
figura, por alcunha “Ministro”, também deputado nomeado pelo Governador Almeida
e Costa, Cambeta tem a melhor das recordações: “uma pessoa excepcional, de
humanismo autêntico, mas o emprego que me dava não tinha futuro, só auferia 200
patacas”.
Então concorreu para subchefe da PSP, depois de três meses de preparação
específica, ficando em 1º lugar na prova escrita e boa classificação na
prática, tal como na oral, mas “quando veio a classificação estava em 17º. “Reclamei,
tinha faltado um dos elementos do júri e eu respondera acertadamente a tudo.
Soube que tinha existido uma falcatrua que nos dias de hoje evito lembrar-me”. Novo concurso, desta vez para a Polícia Marítima e Fiscal, em 1967, como guarda de 2ª. Subiria mais tarde de posto.
Soube que tinha existido uma falcatrua que nos dias de hoje evito lembrar-me”. Novo concurso, desta vez para a Polícia Marítima e Fiscal, em 1967, como guarda de 2ª. Subiria mais tarde de posto.
Voltemos a 66, ano destacado na revolução cultural. “Nessa altura” –
recorda Cambeta – “a que viria a ser minha esposa, morava perto do antigo
quartel dos Bombeiros, hoje um museu; estava a visitá-la quando ouvimos um
barulho enorme provocado por uma multidão que vinha gritando desde os lados do
Hospital Kiang Wu. Percebi que aquela algazarra era contra o governo dos
portugueses em Macau. Consegui meter-me no autocarro, mas no dia seguinte,
quando pretendia apanhar o transporte, não permitiram que entrasse no
autocarro, por ser português. Já na véspera, ao querer comprar tabaco, não me
venderam. E foi assim durante uns tempos, aos portugueses era quase tudo
recusado. Foram momentos algo complicados, lembro-me do derrube da estátua do
coronel Mesquita, mesmo em frente ao Leal Senado, tal como o braço que partiram
à estátua de Jorge Álvares”.
Como muitos testemunhos recordam, e a memória de Cambeta acompanha,
destaque-se o exemplar comportamento de vários comerciantes e outras pessoas
que, correndo alguns perigos, faziam chegar a elementos da comunidade
portuguesa muitos bens de que ela necessitava. E ainda a “influência
inteligente do senhor Ho Yin, que foi decisivo no equilíbrio alcançado”. A
realidade é que, na opinião deste português, depois desses acontecimentos,
“Macau mudou bastante, principalmente no comportamento de funcionários em
alguns serviços. Mesmo em termos de alimentação, na maneira de vestir, e em
personalidade. Prosseguiram casos susceptíveis de serem tomados como corrupção,
mas o tratamento para com a generalidade dos chineses melhorou bastante”.
Na PMF, afirma, foi muitas vezes colocado em situações e locais de muita
responsabilidade, como o de comandante da Divisão Policial e Fiscal da PMF,
“com promessa, não comprida, de promoção a comissário”; orgulha-se de ter
combatido a corrupção, “o que me trouxe prejuízos, não alinhava com alguns e
com várias coisas que se faziam. Sinto honra no facto de as primeiras portas
electrónicas e uma mesa de raio X em Macau, terem sido montadas por mim no
terminal marítimo do Porto Exterior, que até àquele momento era uma bandalhice.
Até o governo do Japão reconheceu o trabalho”. Em matéria de reconhecimentos e
louvores, Cambeta teve vários. Destaque para 1989, Medalha de Dedicação imposta
pelo Governador Melancia, ou a de 1991, de Mérito Profissional, no tempo do
Governador Rocha Vieira.
Na época, refugiados procuravam Macau como primeiro porto de abrigo. Com
indisfarçada emoção, Cambeta lembra a debilidade com que esses refugiados
chegavam: “vi, junto do padre Nicosia, em Ka-Hó, os primeiros 32 refugiados
vietnamitas.
Oficiais do exército do seu país que tinham comprado com ouro uma embarcação chinesa cuja tripulação os atirou às águas ao largo de Macau, tendo eles nadado até à nossa costa. No grupo vinha uma mulher grávida. Quem fez assistência ao parto foi minha esposa, enfermeira especialista que trabalhava na Maternidade do Hospital.
O padre Lancelote, outra pessoa de grande envergadura moral, com estreito relacionamento com as Nações Unidas, tomou conta deles, pouco tempo depois nenhum estava em Macau”.
Oficiais do exército do seu país que tinham comprado com ouro uma embarcação chinesa cuja tripulação os atirou às águas ao largo de Macau, tendo eles nadado até à nossa costa. No grupo vinha uma mulher grávida. Quem fez assistência ao parto foi minha esposa, enfermeira especialista que trabalhava na Maternidade do Hospital.
O padre Lancelote, outra pessoa de grande envergadura moral, com estreito relacionamento com as Nações Unidas, tomou conta deles, pouco tempo depois nenhum estava em Macau”.
Multiplicam-se os refugiados do Vietname: “apanhei muitos em pelo menos
duas operações no mar. Ordens superiores no sentido de os expulsar, quem
mandava entendia que Macau não tinha condições para albergar tanta gente: Eles chegavam a partir as embarcações para
que não fosse possível a sua saída. Por algumas vezes, através do diálogo,
convenci-os a serem rebocados por nós até perto de Hong Kong”.
Saiu da PMF para concorrer ao curso de oficiais na Escola Superior de
Polícia. Pedido indeferido, apesar de ter as condições necessárias –
“Preferiram admitir guardas chineses; fiquei a pensar nas injustiças e
aposentei-me em 92 com 48 anos de idade”. Tempo de incógnita sobre o ambiente
para com portugueses logo a seguir a 20 de Dezembro de 99. Bom número de
cidadãos, incluindo macaenses, compraram casa em Portugal, Cambeta fez o mesmo
– “meu filho mais novo estudava no Canadá, o mais velho tinha pedido
transferência para Portugal, sem saber que depois lhe iriam baixar três
categorias, por isso voltou”.
Solicitado ingresso para Portugal, foi-lhe lhe dado: “por causa disso não
me dão subsídio de renda de casa; a minha Lourdes não pediu, mas também não
recebe”. O casal não se adaptou, regressando a Macau. Cambeta chama “raiva”, ao
que sente sobre as autoridades portuguesas que nunca o consideraram funcionário
da República: “também não estou interessado em ser português, os governantes
sempre desprezaram as pessoas, principalmente os portugueses que fazem a vida e
dignificam o país no estrangeiro.
Várias ocasiões assumi funções de comandante e outras, sem nunca ganhar como tal. Mas vinham uns espertos de Portugal, sem perceber nada disto, e auferiam, arrogantemente, bons vencimentos. Não existiam preocupações em formação, as pessoas aqui eram lançadas para responsabilidades sem estarem preparadas”.
Várias ocasiões assumi funções de comandante e outras, sem nunca ganhar como tal. Mas vinham uns espertos de Portugal, sem perceber nada disto, e auferiam, arrogantemente, bons vencimentos. Não existiam preocupações em formação, as pessoas aqui eram lançadas para responsabilidades sem estarem preparadas”.
Fala de amizades inesquecíveis, como um antigo Governador de Cantão ou
pessoal da alfândega chinesa de outros tempos.
António Cambeta tem sentimentos divididos entre Macau e Tailândia: “Tailândia é o meu segundo país, conheço-o melhor do que Portugal, há 45 anos que reparto a minha vida também por lá”.
António Cambeta tem sentimentos divididos entre Macau e Tailândia: “Tailândia é o meu segundo país, conheço-o melhor do que Portugal, há 45 anos que reparto a minha vida também por lá”.